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Sobre pedaços de alma espalhados em uma película

Confesso que desconheço a filmografia de Sidney Lumet, o que se configurou um grande erro após a apreciação de “Antes que o diabo saiba que você está morto”. Talvez, entrar na sala de cinema virgem de qualquer referência estética sobre a obra desse cineasta, tenha feito a experiência de ver ao seu mais recente filme algo ainda mais instigante. Uma busca por traços artísticos e de personalidade em uma película, aquela fissura que separam os diretores criadores dos diretores burocratas.

Hollywood se especializou em criar tramas mirabolantes sobre assaltos. Um gênero menor, mas ainda assim com suas regras estabelecidas. Geralmente a trama se resume ao seguinte: inicialmente, acompanhamos a preparação do roubo e a planejamento das estratégias. Posteriormente, somos apresentados ao assalto com todos os imprevistos já previstos. Por fim, no quase final, quando acreditamos ter chegado ao desfecho, uma grande virada dramática, um final surpresa. Tudo para os adolescentes saírem das salas de cinema tentando costurar as pistas e se sentirem mais inteligentes do que geralmente são. Sempre alguém diz: “Eu já sabia!”

Na obra de Lumet não temos um plano mirabolante, não temos reviravoltas surpresas, tampouco o roubo é o grande destaque. A cena do tal assalto dura apenas alguns minutos e se desenvolve de forma simples. Daí vem a genialidade de Lumet, a partir de uma seqüência tola, desenvolver um filme que caminha para um desastre de proporções colossais, maior do que qualquer roubo à Cassinos.

Gosto de filmes que trabalham com a idéia do efeito borboleta ou efeito dominó. Pequenas ações que causam conseqüências catastróficas. Gosto de ver as personagens perdidas, desesperadas, sem saída. Alejandro González Iñárritu se especializou nisso. Pelo menos até ele fazer o “fora do ponto” Babel. Os cachorros de Amores Brutos são ainda inesquecíveis.

Em “Antes que o diabo...” (Ok, esse título é bacana, mas chato para escrever), Lumet prefere reviravoltas psicológicas. O que interessa ao cineasta é mostrar que o pequeno ato (o roubo) poderia ter motivações inimagináveis e conseqüências ainda mais imprevisíveis. O cineasta opta por um jogo de ir e voltar no tempo. Algo que em um filme de Tarantino seria apenas uma “forçação de barra” barata para imprimir uma assinatura estilística. Lumet utiliza esse recurso de retalhos temporais para deixar o espectador perdido, ansioso e impotente, assim como suas personagens. Da mesma forma, um rede de figuras dramáticas vai pouco a pouco surgindo. O eixo da trama que parecia inicialmente restrito aos dois protagonistas vai aumentando à medida que mais um trecho da história é apresentado. O diretor opta por apresentar cada segmento sob o ponto de vista de cada uma das personagens. Lumet nos torna cúmplices delas. Em um instante só acompanhamos e temos consciência dos atos de Andy para só em um outro instante sabermos as reações e ações de Hank.

Mas “Antes que o diabo saiba....” não seria o que é sem a sua dupla de protagonistas. Philip Seymour Hoffman parece fazer mais uma daquelas suas interpretações sobrenaturais. Saindo de um aparente equilíbrio para um homem totalmente desestabilizado emocionalmente. Ethan Hawke perfeito no papel de um adulto irresponsável, inseguro e fracassado. Ponto negativo para Marisa Tomei. Perto da dupla, Marisa parece uma atriz iniciante, incapaz de um olhar, um sorriso, um gesto tocante. Só não é um desastre porque Gina talvez seja exatamente como uma interpretação de Marisa: apática.

De equívocos, apontaria a trilha sonora pouco inspirada e um erro no último ato relacionado à regra criada pelo próprio Lumet. Apesar de apontar o último trecho como sendo o ponto de vista da personagem de Albert Finney, Charles, somos apresentados a seqüências sem a presença dessa personagem e sob pontos de vista de outras. Nada que incomode.

Lumet é um maestro. A sutiliza da fotografia que a cada ponto de vista posiciona a câmera próxima da personagem focada, como se a tornasse cúmplice, a subversão de um gênero e direção de elenco, provam que o cineasta consegue deixar sua alma na obra. Algo pouco comum.