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Sobre câmeras e minha memória rasa

Esse texto necessitou de um esforço duplo para ser feito. Primeiro, o esforço sobre-humano para conseguir escrever poucas linhas. Poucas, mas proveitosas linhas. Segundo, para conseguir resgatar da minha memória rasa algumas lembranças do filme Escafandro e a Borboleta. Lembro-me que imediatamente ao sair do cinema, pensei em uma série de questões que gostaria de levantar. Uma série de impressões que deveria compartilhar. Não existem mais. Elas se foram. De repente comecei a raciocinar que não guardo imagens por muito tempo. Sei que um filme me tocou de alguma forma, mas quase sempre não me recordo o porquê. Não guardo sinopses, não guardo nomes de personagens, não guardo desfechos. No entanto, a experiência de ter visto uma obra espetacular continua em meu cérebro. Se perguntarem se gostei de tal filme, respondo com a convicção daqueles que poderiam fazer uma análise técnica com precisão. Falo baseado em sentimentos. Veja bem, não estou fazendo juízo de valor entre as duas coisas. Faço isso por uma deficiência biológica, não por opção.

Os filmes depois de vistos formam uma imagem anômala, disforme e indescritível na minha cabeça. Essa é lembrança que tenho deles. Nada e ao mesmo tempo tudo. Minha visão de um filme é comparável a uma câmera subjetiva. E era sobre isso que gostaria de comentar. Sobre câmeras.

Há uma polêmica no meio acadêmico sobre o conceito de Câmera Subjetiva e Câmera Ponto-de-vista. Para a grande maioria de estudiosos desocupados, a câmera ponto-de-vista é aquela que apresenta a visão da personagem, uma câmera-olho. Já a câmera subjetiva, seria aquela ligada à visão onírica, do plano do sonho.

Interessante perceber como um filme (com um pouco mais de uma hora e meia) pode colocar abaixo teorias quase inquestionáveis. Na produção de Julian Schnabel temos um homem que perde quase todos os movimentos do corpo após um derrame. Um de seus olhos é costurado e o outro serve mais como um veículo de comunicação do que como um órgão responsável pela visão. Digo isso porque Jean-Dominique Bauby não se limita ao seu único olho para ver o mundo.

Durante quase metade da produção a câmera é posicionada como sendo o olho da personagem principal, ela desfoca quando o olho desfoca, ela se fecha quando o olho se fecha. Temos aqui (teoricamente) uma típica câmera ponto-de-vista.

Em outros momentos, Bauby passei pelo hospital e participa de um jantar maluco. Uma câmera subjetiva, naturalmente.

Porém, aqui coloco um pertinente questionamento: considerando o contexto do filme, não seria a câmera subjetiva a própria visão da personagem. Não teria após o choque traumático pelo qual passou, criado um outro universo com o qual poderia intervir, dialogar e agir? Como o conceito de real pode ser tratado nessa obra e nessa situação? Alguém teria coragem ou a arrogância de falar para Bauby que aquele jantar era uma farsa e que o mundo real era na verdade aquele seu pequeno e limitado campo de visão?

Aquela seqüência do jantar, em que uma câmera convencional (um plano convencional) filma uma “alucinação” de Bauby em um jantar lascivo ao lado de uma bela mulher é na verdade uma câmera ponto-de-vista. Apesar da câmera não estar posta no lugar do olho da personagem e embora essa seqüência esteja dentro do plano da alucinação (isso do nosso ponto-de-vista).

Da mesma forma, quando temos um passeio de Bauby pelos corredores do hospital, estamos diante novamente de câmera ponto-de-vista, agora com uma câmera posicionada na mesma direção do olhar da personagem.

Escafandro e a Borboleta é um filme tão complexo que não me deixa colocar um fim ao meu raciocínio. Nesse exato momento em que escrevo “nesse exato momento” está passando pela minha cabeça uma série de dúvidas sobre essa coisa do olhar no cinema. Eu prefiro acabar aqui antes que eu tenha um colapso mental.

PS1: A cena do passeio de Bauby pelos corredores do hospital não seria uma homenagem à obra de Aleksandr Sokurov, Arca Russa? Aquelas personagens de épocas diferentes passeando em um único espaço?

PS2: Como vocês puderam perceber, não consegui escrever poucas e proveitosas linhas. Tento novamente na próxima vez.

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