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Sobre a agenciadora de romances

Dizia a vizinhança que não houve nenhum outro caso tão misterioso na Avenida L. Repetiam a história aos que passavam e, embora com variações cronológicas significativas, podiam contá-la com uma aparente precisão, dessas de invejar o mais experiente perito forense.

Marta Melina era uma franzina de costelas à mostra. Os dentes da frente pareciam saltar da boca de modo desesperado. Falava feito gralha gripada, o que fazia a rotina de ouví-la um exercício inevitavelmente doloroso.

Devem ter existido outras agenciadoras no mercado, mas nenhuma como Marta Melila. Era extremamente prendada em formar casais nas esquinas da Barra do Ceará. Diziam que era seu talento nato. Uma dessas coisas que religiosos creditariam ao poder divino. De fato, agenciadoras não são formadas em escolas. Não existem técnicas ou tradições que possam ser repassadas em apostilas.

Marta agia por gosto. Deliciava-se com os beijos trocados nos bancos de madeira. Gozava com as mensagens em papel ofício trocadas de casa em casa. Era extremamente precisa. Por vezes colocava perfume nos bilhetes em uma tentativa caprichosa de incentivo aos que teimavam não se amar.

Contaram-me quando criança, o que permite o perdão do leitor pelos esquecimentos da idade, que Marta passou a conversar rotineiramente com alguém que jamais era visto ao seu lado. Podiam vê-la todos os dias na praça debatendo temas com uma sombra. Era flagrada rotineiramente sorrindo para o vento. E ver Marta sorrir era sempre uma cena comovente.

As noites de conversa com o Senhor Ninguém viraram o falatório da rua. Não demorou para que os pais ouvissem o relato preocupado das vizinhas mais chegadas. Professores convocaram seguidas reuniões para esclarecimentos. Marta, uma abusada, continuou com sua amizade invisível. Inabalável.

Deram-se então os primeiros comentários sobrenaturais. Diziam que a garota conversava com um rapaz recentemente vítima de afogamento no Rio Ceará. A história causava calafrios aos estudantes da quinta série. Muitos eram os que se negavam a sentar ao seu lado. No recreio ficava isolada tomando suco de laranja em meio a conversas ao pé do ouvido com o nada.

Contam que Marta, em uma segunda-feira comum, apareceu no colégio assustadoramente simpática. Conversou com gente de carne e osso durante o recreio e convidou uma de suas colegas para um passeio na praia da Barra. A garota temeu o convite, mas aceitou temendo represálias dos que rezavam pelo afastamento do encosto.

Não há muita certeza sobre o que houve no passeio. Conta-se apenas que Marta acordou cedo no domingo, passou na casa da colega e saíram as duas caminhando em direção à praia pela Avenida Coronel Carvalho. Às 3 da tarde, gritos de desespero foram ouvidos por um raio de dois ou três quarteirões. A colega de Marta havia enchido os pulmões de água minutos antes. Aspiração em grau 4 e mortífera hipóxia. Sem chances. Marta não soube explicar o que havia acontecido. Contou apenas que, em um momento de distração, perdeu a colega de vista e só a encontrou quando banhistas corriam para beirada do mar.

A família conformou-se com a fatalidade e providenciou o velório. Ônibus chegavam carregando dezenas de olhos vermelhos que se atiravam ao caixão com uma dramaticidade caricata.

Marta passou por fria. Sem coração. Não derrubou uma lágrima até a saída do cortejo. Alguns contam que a garota esquelética, ao ver o caixão ser carregado, esboçou um acanhado sorriso enquanto sussurrava palavras no canto da boca. Alguns, até hoje, podem jurar que Marta fez a sua célebre cara de dever cumprido. Cara de mais um preciso acerto. Como uma boa e dedicada profissional ao ofício de agenciadora de romances.

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