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Sobre eu e meu Deus

Conheci Deus aos 6 anos. Foi quando uma espinha de peixe teimou em não passar por minha garganta. Devorei incontáveis bananas e engoli quilos e quilos de farinha. Não adiantou. A espinha continuou rasgando minha traquéia sem dó. Parentes tentaram me convencer de ir ao médico, mas um tipo de medo embrionário me impediu. Preferi esperar que ela descesse por vontade própria.

Mamãe, já aceitando a teimosia, sugeriu que eu fizesse uma promessa. Explicou-me que eu deveria oferecer algum sacrifício em troca de um milagre. Não soube ao certo o que eu poderia oferecer como moeda de troca. Fiquei meio perdido por alguns dias. No fim, resolvi sacrificar o que toda criança de seis anos poderia sacrificar: um dia sem ver TV.

Não soube como agir no dia do trato. Eu não havia feito catecismo e desconhecia todos os procedimentos padrões e cerimônias para conversas com Deus. Mas naquele dia, com joelhos sobre o piso de madeira e mãozinhas unidas, tive a mais inocente e ingênua conversa com o Pai. Falei de como a espinha incomodava e ofereci meu dia sem TV em troca da cura.

No dia seguinte, acordei com a garganta limpa. Deus tocou meu sistema respiratório como um bom profissional: impecável.

Agradou-me o fato de milagres serem tão fáceis. Peguei gosto por pedidos feitos com joelhos sobre o piso de madeira e mãozinhas unidas. Pedi carros, bonecos, bolas e sapatos. Ofereci doações de bilas, dias sem ler quadrinhos e manhãs sem brigas com minha irmã.

Deus havia criado um menino mimado. E quando Deus resolveu não mais aceitar todos os meus tolos sacrifícios, perdi a fé. A birra durou até o dia em que, por medo do escuro do meu quarto, clamei por apoio divino. Percebi nesse dia que não poderia viver sem Deus. Doeu-me a constatação de que ele vivia muito bem sem mim, mas que eu dependia completamente dele.

Hoje, não faço mais escambos com Deus e não há nenhum tipo de chantagem. Não tenho o meu Pai como um financiador de milagres. Deus não cobra o meu amor e eu não cobro o amor de Deus. Não o culpo por minha vida e não há rancor algum. Não o acuso por meu coração ferido, pelo segundo assalto sofrido este ano, pelos dramas de família, por meu computador e celular roubados.

Deus é o amadurecimento criado por minhas perdas. Deus é o processo de aceitação do que não posso ter, o meu desvio de caráter, o meu ódio, o meu amor, os meus amigos, o abraço da minha mãe, meu suor pós-corrida, o sorriso de quem não conheço, os cafunés que recebo e ofereço, minha falta de ética, minha fome, minha nobreza, minhas quedas, minhas glórias, minhas mentiras, meus fios de cabelo branco, minhas risadas atrapalhadas, minha falta de lembrança, minha miopia e o meu macarrão.

Deus sou eu. Imagem e semelhança.

1 comentários:

Bicho do Macho disse...

Adorei e por falta de mais tempo neste momento, não li por completo, mas vou prometo revisitar seu blog a fim de ler "Sobre eu e meu Deus" e outros temais mais. Com certeza deve ter muito mais postes de meu interesse. Parabéns, Bruno. De verdade, porque eu só elogio algo se realmente gostar de fato. Vou seguir seu blog, certo? Abraço.