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Teté

Teté tinha pele de sessenta e cinco anos e óculos de oitenta e quatro. Os mais antigos não sabiam ao certo quem havia chegado primeiro – se Teté ou o Bairro. Nunca houve registros oficias de namorados de esquina, filhos perdidos, desavenças com os contatos de muro ou dívidas no mecardinho da esquina.

Jamais encontrei Teté sóbria. Sua condição de bêbada profissional era tão naturalizada que os ma...is desavisados poderiam confundir cinco doses de Whisky com a caducagem da velhice. Não era. Seus poros exalavam bafo quente de álcool que não lhe permitiam nitidez de mais de três passos. Por vezes caia, mas levantava com a superiodade de rainha levada ao chão por inveja. Desprezava a areia nos joelhos com um farfalhar qualquer.

Teté era uma colecionadora. Passava os dias catando histórias do chão. Interessava-se particularmente por artefatos com origem conhecida. Era hábil em catar restos de namoros, brigas conjugais, desesperos das provas de fim de ano ou eletrônicos substituídos por uma nova condição social. Como em um gabinete de curiosidades do século XVI, Teté mantinha a história da vizinha inteira em prateleiras organizadas por casas, do número 401 ao 431.

Meus irmãos faziam uma aposta mórbida sobre quantos anos ainda sobreviveria. “Desse ano não passa”, disse o mais otimista. Mas Teté era discreta e sobreviveu por dez anos e três garrafas de Martini. Morreu em dia de Sílvio Santos de um maio qualquer. Foi enterrada torta, feia, bêbada e vestida com suéter azul. Não houve choro, lamento, remorso ou despedida.

Parentes distantes apagaram toda a sua coleção sem dó. Sapatos voltaram a ser sapatos, copos voltaram a ser copos, brincos voltaram a ser brincos. O memorial da rua virou lixo depois da queda as cinco e meia e parada cardíaca as cinco e trinta e três.

Dia desses me peguei pensando em Teté. Estava torto, feio, bêbado e vestido com três noites mal dormidas. Pensei no que de mim ela deveria ter. Pensei quais seriam as relíquias da minha vida que estariam instaladas na prateleira do número 411. Jamais soube e jamais saberei. Talvez Teté seja aquela que melhor compreendeu a minha vida até hoje.

Lamento por não tê-la mais na vizinhança. Lamento porque agora não me importo em deixar os pedaços da minha história espalhados pelo chão. Teté faria a festa com uma prateleira cheia de quinquilharias descartadas ao fim de tarde. Talvez bebêssemos algumas doses de conhaque entre conversas sobre meias, fones de ouvido e lençóis sujos.

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