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Salgadinhos

Mamãe vendia salgadinhos e doces na feira do Conjunto Polar. A feirinha começava sábado de manhã quando eu a ajudava a fechar as coxinhas e esperava a panela para passar o dedo no restinho de cobertura de chocolate. Estendia a toalha branca de renda sobre a mesa e tentava arranjar as bandejas de alguma forma atrativa para o público.

Não havia uma doação minha. O que eu fazia por mamãe não era vo...luntariado. Ficava sentada na calçada para que as vendas fossem um fracasso. Torcia para que sobrasse todo o bolo de laranja e nenhum pedaço de torta fosse vendido. Eu sabia que as sobras sempre acabariam na minha barriga. Era o meu pagamento pelo serviço prestado.

Mamãe jamais soube que eu a sabotava secretamente. Nunca reparou a minha felicidade malvada ao me lambuzar com calda de chocolate e frango desfiado. Foi assim por meses até que as vendas começaram a crescer. Foi aí que mamãe resolveu aumentar a produção que, como muito sucesso, era toda escoada para casais apaixonados, velhinhos faceiros e meninos gordinhos.

Mas o sucesso da mamãe afetou profundamente o meu banquete ao fim da feira. Passei a ter que implorar por um pedacinho de doce ou um toquinho de torta de queijo. Mamãe nem sequer justificava. Tangia o filho pidão com um fino desdém.

Corria para o meu quarto chorar o capricho não atendido. Chutava a cama do meu irmão, vomitava os poucos palavrões que conhecia e dormia emburrado enrolado na rede. Foi ali, por conta de dois pedaços de bolo mole, que percebi que eu não podia ter tudo que eu queria.

O problema é que você descobre que não pode ter sempre o canudinho misto ou a torta de limão quando quiser, mas outros doces e salgados sempre aparecem. Outros doces e salgados sempre aparecerão. E perder a birra é um processo tão doloroso... Um processo cheio de chutes na cama e palavrões soltos em quartos vazios. Às vezes me sinto como um pivete que se aproxima de uma mesa cheia de guloseimas e que tem sua inocência reprimida por uma tia chata e dois tapinhas na mão.

O problema é que, por muito tempo, eu fui um malcriado. Nunca me deixei me reprimir por tapinhas de parentes ranzinzas. Minhas tias desconheciam as técnicas avançadíssimas para roubar beijinhos e brigadeiros com precisão cirúrgica. Mamãe nunca soube que eu secretamente apanhava pedaços de bolo fofo para comer escondido no meu quarto.

Então fiquei velho e perdi a coragem de ser malcriado. Cansei de construir estratégias mirabolantes para conseguir o que eu quero. Alguns chamariam isso de amadurecimento. Eu chamo de uma grande, imensa e bela burrice. Sonho todos os dias com a possibilidade do moleque que luta até as últimas conseqüências voltar algum dia. Tudo o que meus estúpidos 28 anos de amadurecimento me trouxeram foi a coragem de me enrolar na rede e esquecer. Tudo o que os os meus estúpidos 28 anos me trouxeram foi a certeza de que secretamente eu me saboto.

Nunca me senti tão triste por todos os bolos e salgadinhos que jamais roubei. E esse talvez seja o meu mais tolo capricho.

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